SOBRE AS AUDIÊNCIAS: FALAR INGLÊS NÃO IMPRESSIONA
- Nércio Machele
- 20 de mar.
- 4 min de leitura

Tenho refletido bastante sobre o peso da “língua inglesa” na comunicação e no marketing, seja a nível pessoal ou organizacional. Não há dúvida de que certos conceitos e expressões parecem mais impactantes no idioma original — "Storytelling", por exemplo. Mas será que, para a nossa audiência local (não falante do inglês), essa mesma palavra não teria um efeito mais forte se traduzida para a língua que domina? Afinal, "Storytelling" nada mais é do que a "arte de contar histórias".
O inglês aqui é apenas um exemplo. O ponto central é: que benefício há em usar uma linguagem que não é “conhecida ou dominada” pela nossa audiência primária? E, antes de seguir, vale reforçar: audiência primária é aquele primeiro público que queremos alcançar e impactar com os nossos conteúdos.
No meio dos comunicólogos e marketeiros (como dizem os brasileiros), é comum usar expressões ou até fazer publicações (sim, “post” não é português) em idiomas internacionais. Mas isso pode gerar uma desconexão com o público mais amplo, que pode simplesmente não entender a mensagem.
Vamos a exemplos concretos:
Tenho um amigo fotógrafo, "bom" no que faz. De uns tempos para cá, começou a publicar apenas em inglês no LinkedIn. Ele justifica essa escolha dizendo que quer alcançar novos clientes, especialmente de Organizações Não Governamentais (ONGs), onde muitos falam inglês. Mas será que, ao tentar expandir seu alcance, ele não estaria perdendo a conexão com aqueles que o acompanharam até aqui?
Outro exemplo é de um rapper que admiro muito. Ele começou a sua carreira cantando na língua local, com a qual todos o entendiam. No entanto, em algum momento, passou a compor e cantar em outro idioma. O resultado? “Perdeu a fama” (risos). Isso me leva a um questionamento: será que, além da importância de inovar e explorar novos horizontes, abrir mão da nossa língua — que é parte da nossa identidade — não acaba sendo um tiro no pé para o nosso próprio sucesso ou o da nossa marca?
Isso não é um caso isolado. No mundo dos negócios, já vimos empresas que tentaram internacionalizar a sua comunicação sem uma estratégia bem definida e, como resultado, perderam clientes locais.
QUANDO A COMUNICAÇÃO SE DESCONEXA DO PÚBLICO
Casos de campanhas que falharam ao ignorar barreiras linguísticas e culturais são numerosos e muito deles documentados:
Em 2006, a Sony lançou uma campanha na Holanda para promover um novo modelo de PSP branco. A imagem mostrava uma mulher branca dominando uma mulher negra, ao lado do slogan "O portátil branco está chegando". O anúncio foi amplamente criticado por racismo e teve que ser retirado do ar (Cases de fracasso: campanhas de marketing que deram errado e dicas para a sua ser um sucesso – Leme).
Em Moçambique, um dos exemplos mais emblemáticos de falhas na comunicação é o uso ambíguo do "X". Durante as eleições, os eleitores são instruídos a marcar um "X" no candidato ou partido de sua escolha. No entanto, em campanhas de combate à cólera por exemplo, materiais educativos ilustravam que o uso de latrinas era correto com o símbolo "☑️", enquanto práticas inadequadas eram sinalizadas com um "X". O resultado? Confusão entre comunidades, onde alguns interpretaram o "X" como a escolha certa, comprometendo a eficácia da mensagem.
Esses casos mostram que, quando uma marca se distancia da sua audiência primária ou falha em entender seu público, a comunicação pode ter o efeito oposto ao desejado.
INTERNACIONALIZAÇÃO SEM PERDER IDENTIDADE
Claro, não estamos aqui a dizer que devemos ignorar o "inglês", ou evitar a internacionalização das nossas mensagens. Pelo contrário, em alguns contextos, o uso do inglês pode até ampliar oportunidades. Um bom exemplo disso é um artista moçambicano que canta em changana e português, mas utiliza o inglês para descrever as suas músicas nas plataformas digitais. Dessa forma, ele mantém sua essência, mas também torna sua arte acessível para um público global.
Outro caso interessante é o de empresas africanas que, ao expandirem suas operações para mercados internacionais, adotaram uma abordagem bilíngue: mantendo a comunicação em sua língua local para o público interno e utilizando o inglês estrategicamente para alcançar novos mercados. Dessa forma, conseguiram crescer sem alienar aqueles que já os acompanhavam.
Isso nos leva a outra reflexão: o que seria de um cirurgião brilhante que não soubesse falar a língua do seu paciente? Seria um grande desafio, certo? Da mesma forma, um cantor, por mais talentoso e fluente em inglês que seja, dificilmente se tornará um sucesso internacional se, a nível nacional ou local, ninguém o entende ou escuta. O primeiro público é essencial — são essas pessoas que, através das suas emoções e envolvimento, fazem com que outros públicos e comunidades externas percebam o valor da nossa arte. Um clube de futebol, por exemplo, é tão forte quanto a sua base de adeptos, que em grande parte são locais.
Se o objetivo é crescer e alcançar novos mercados, a estratégia deve ser equilibrada: comunicar-se em inglês quando necessário, mas nunca ao ponto de perder a conexão com aqueles que nos trouxeram até aqui. Afinal, uma mensagem só tem impacto se for compreendida.
Isso não significa que não devamos internacionalizar os nossos discursos, publicações ou intervenções. Longe disso. A questão é que, assim como clubes, cantores, políticos, líderes religiosos e outras figuras públicas, as marcas — sejam elas pessoais ou organizacionais — precisam garantir que continuam a ser compreendidas pelo seu primeiro público. Porque, para eles, falar inglês não é, necessariamente, impressionante.
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